Os textos são da minha autoria excepto quando explicitamente mencionado e as imagens são na sua maioria retiradas da internet.

@lexis

6 de setembro de 2010

Morpheu

Nem ela sabia bem o que esperava encontrar quando se sentou em frente ao mar aguardando por um barco que talvez nunca chegue. Tinham-lhe dito que nesse dia um barco traria o que ela ansiava. Tinha esperado 15 anos por aquele dia desde aquela noite em que o sonho lhe tinha falado. Teria sido mesmo um sonho? Ou seria efeito da febre que não a tinha largado ao longo de meses intermináveis? Só sabia que aquele sonho se repetia de cada vez que os olhos se fechavam e mergulhava nos braços de Morpheu. Uma voz sem rosto repetia-lhe as mesmas palavras proféticas. Tinha esperado e desesperado, sonhado e tido pesadelos, falado e calado a esperança de uma vida. Julgava tudo um delírio até ter tido mais tarde várias visões premonitórias que lhe diziam que mais valia esperar e ver no que daria aquela ansiedade. Só quando começou a acreditar de facto naquelas palavras é que a febre tinha começado a baixar. Isso tinha que querer dizer alguma coisa, não?

Tinha chegado finalmente o dia. Fez uma mala pequena. Vestiu uma roupa quente, apanhou o primeiro autocarro para algum lado indo desembocar naquela praia e chegou lá quando o sol se começava a por. Era lindo de ver aquele misto de cores reflectidos num mar chão. Quase que podia imaginar uma sereia penteando os cabelos naquela rocha, e o pai Neptuno a chamá-la para dentro, para longe dos olhares curiosos dos humanos. Imaginava-se a mergulhar naquelas águas ainda mornas do sol de outono e segui-los até às profundezas do mar onde provavelmente sumiriam da sua vista e ela finalmente se perderia naquela imensidão de rochas e plantas. Aguardava. Sentou-se numa rocha, joelhos dobrados em frente ao corpo, xaile a cobri-la da cabeça aos pés. Quem olhasse de longe julgá-la-ia uma rocha, não fossem as franjas do xaile ao vento, misturadas com os longos cabelos que se lhe escapavam do xaile. Anoitecia e nada acontecia. O sono ameaçava. Para o poder despistar, ergueu-se e caminhou ao longo do mar. Descalça, o frio ameaçava enregelar mas os pensamentos aqueciam-na por dentro. Caminhava sem destino ao longo de uma praia imensa enquanto o sol se punha do seu lado direito e o frio chegava finalmente.

O facto de ele fazer a mala e sair de casa num final de tarde sem dar explicações não abonou nada em favor da sua sanidade mental. Apenas algo lhe dizia que tinha de ir ‘lá’. Onde, não sabia. Tinha a sensação que conforme caminhasse, o próprio caminho se desenharia à sua frente. Sabia que tinha que ir aquecido porque algo lhe dizia que ‘lá’ estaria frio. Podia levar o carro, mas por algum motivo não lhe parecia o mais correcto. Saiu de casa com uma pequena mala. Enquanto caminhava, os pés guiaram-no a uma paragem. Apanhou um autocarro, julgando que seria uma questão de sorte, de destino, se aquele fosse o correcto. Adormeceu por algum tempo. Alguém o abanou dizendo que era a última paragem. Ergueu-se feito autómato e saiu. Não conseguia ler o letreiro da localidade. A única luz provinha do por do sol em frente, numa praia imensa. Encolheu os ombros - um passeio pelo areal até lhe faria bem. Descalçou-se. Sentiu a areia ainda morna nos pés - tinha chegado. Onde e para quê não sabia, mas tinha chegado. Encaminhou-se para a beira-mar. iniciou a sua caminhada com o coração acelerado pela emoção. Do seu lado esquerdo o sol desaparecia. Sentia uma ânsia indescritível, com uma vontade imensa de correr em direcção a qualquer lado.
 Quanto mais caminhava mais o seu coração batia, cada vez mais descompassado. O frio começou a passar. O xaile caiu e só o vestido comprido traía a sua condição de humana. Sem ele, pareceria sereia feita humana por algum amor agora desaparecido. Tinha tanta vontade de entrar mar adentro e respirar debaixo de água... Ajoelhou-se junto á água. Sentia o frio penetrar pelo corpo. Já nada importava. De que lhe servia ter vindo? Nada aconteceria, como nada até hoje tinha acontecido na sua vida monótona. Lentamente, acompanhando o seu crescente torpor causado pelo frio, começou a conseguir lembrar-se dos seus sonhos. Recordava um rosto firme, uns olhos negros e profundos que a observavam como se a conhecessem desde sempre. Ao mesmo tempo que se sentia desfalecer quase ouvia uma voz que lhe gritava para não o fazer. Mas ... fazer o quê? Viver? Deixar de viver? O QUÊ?

Não aguentou mais. Começou a correr. Não em direcção a um lado qualquer, mas com a certeza de que alguém estaria ‘lá’ quando chegasse. Corria com quantas forças tinha. Corria de olhos fechados, e vislumbrava pequenas cenas que lhe soaram a déjà-vu: um vulto ajoelhado junto ao mar, uns cabelos compridos ao vento, uma praia imensa. Abriu os olhos e estacou perplexo. A cena estava ali à sua frente. Gritou: Não faça isso!!!! Recomeçou a sua corrida só parando junto à figura de longos cabelos ajoelhada junto ao mar.
Ergueu os olhos e desmaiou. Caíu nos braços dele, não sem antes ter visto uns olhos negros e profundos.

Outubro/2003

1 comentário:

Rui Neves disse...

A purificação de um sonho, onde a agonia do sofrimento se destacou num enorme estado febril, findou num encontro sublime e desejado, apenas compreendido entre almas gémeas...
Por favor diz-me...que ainda perdura este amor entre eles, e que não mergulharam ambos no mar...